A revolta das três damas

A revolta das três damas

Só a beleza redime.

Sacrifícios são novelas.

Mário de Sá-Carneiro, “Sete Canções de Declínio”

Primeira Dama

Ciça nasceu em legítima família italiana.

Desde seus primeiros dias de vida, o pai e o avô paterno, que coabitavam o confortável apartamento do jovem casal na Bela Vista desde que este enviuvou, embalavam o ritual sagrado da amamentação com boa música de câmara.

E funcionou quase como um presságio, pois, já aos seis anos, ela tocava harmônica, e, pouco tempo depois, iniciou, com muito gosto, seus estudos de piano.

Criativa, aprendeu com o avô a beleza das histórias contadas.

Com seu pai, profissional autodidata, aprendeu a importância dos estudos. De sua mãe, herdou a intuição e um esmero invejável na lida e organização que uma família exige.

Formou-se em Administração Pública pela FGV, onde conheceu o marido.

Interrompeu sua ascensão profissional, iniciada logo após o término da faculdade, com o nascimento dos filhos e a lógica de que havia outra carreira a desempenhar, a partir daquele instante.

Tudo caminhava de acordo com os padrões, e ela era feliz.

A morte prematura do marido virou a vida às avessas.

Descobriu que a maternidade a isolara das reais condições econômico-financeiras da família.

O marido, centralizador, imprevidente, e, pior, achando-se imortal, não construiu patrimônio capaz de gerar renda.

O único seguro de vida, desses automáticos, quase compulsórios, de um cartão de crédito, mal foi suficiente para as despesas do enterro e para quitar as despesas do mês do próprio cartão.

Com coragem, retomou a carreira aos 34 anos, e seus filhos, de três, cinco e oito anos, cresceram como ela, aprendendo a conviver com algumas carências, muito esforço e aceitação de ajuda externa.

Trabalhou com esmero, criatividade e dedicação.

Também por isso, cresceu vertiginosamente na carreira.

Ganhou destaque em seu meio. Prêmios, viagens, adulações, prestígio.

Um dia, depois de 15 anos de empresa, com 49 de idade, ganhou uma demissão. Inexplicável. Chorou e teve medo.

Havia trabalhado tanto, tanto, que decidiu que agora era hora de voltar a amar.

Pela internet conheceu alguém que tocava harmônica e piano, que amava viagens e marcenaria, lembrando seu avô, e reaprendeu a amar.

Assim, aos 51, casou e retomou, feliz, a carreira de zelosa e orgulhosa dona de casa, preparando-se para ser avó.

Voltou a ler Foucault, Dante e Sartre.

Voltou a tocar Rachmaninof, Mozart e Schubert.

Voltou a receber rosas nos aniversários de namoro.

Virou consultora de vida e carreira de seus filhos e netos.

Segunda Dama

Constantine formou-se economista e também se casou cedo, com um colega de faculdade. Sua carreira também deslanchou cedo.

Por motivos variados, cresceu profissional e hierarquicamente muito mais depressa que o marido.

Quando começaram a ter problemas de administração na enorme casa que construíram, rediscutiram seus papéis nesse contrato chamado casamento de uma forma bastante civilizada, como, aliás, convém aos casais modernos considerados “cabeças”.

Alcançaram consenso na decisão.

Ela passaria a ser, como prova da evolução de nossa sociedade, tida como patriarcal, a “cabeça” do casal.

Inclusive para efeitos legais.

Um dia, se deu conta de que sua mãe estava muito doente.

Crônica e incurável, a doença entrou, sorrateira, na rotina distraída das manhãs corridas e dos trabalhos a terminar, após os jantares sem tempo, de muita conversa inútil.

Sua crise foi profunda, pela grandeza de sua constatação.

Um pouco mais tarde, também se perguntou por que havia desistido da maternidade.

Só que, agora, já era tarde.

Ela estava prestes a completar 45 anos e constatou, tardiamente, que isso fazia falta, a deixava bamba, capenga, semivazia.

E decidiu mudar.

Conversaram, ela e o marido, longamente, e voltaram a discutir os papéis, civilizadamente, e, como convém aos que conseguiram construir relações de amor, souberam usufruir os ganhos dos que, sabiamente, aprendem a reconhecer e respeitar os sinais de que é hora de mudar.

Seu marido retomou os projetos adormecidos, e ela também.

Ainda semana passada, aconteceu o batizado da linda criança, que, de órfã, virou filha de um próspero empresário e de uma feliz mãe, hoje também esmerada estudante de cerâmica raku e exímia dona de casa.

Terceira Dama

Dani, nossa terceira dama, finalmente, é bem jovem, e, mesmo assim, também perdeu o emprego promissor em que crescia com a rapidez dos trainees prematuramente classificados como high potential, porque se recusou a arrumar as malas e enfrentar um novo desafio na matriz, do outro lado do mundo.

Preferiu manter os planos de casar ainda no ano, de engravidar no ano seguinte, fazer cursos paralelos de Filosofia e Antropologia e pensar em viver em outro país só um pouco mais tarde.

Talvez.

Escolheu viver a dúvida, a insegurança, a reflexão e o risco de dizer não.

Risco grande, em especial em multinacional com fortes programas e planos de desenvolvimento de seus talentos.

Como era de se esperar, sua “fritura” na organização não foi rápida, mas certeira.

É evidente que a justificativa oficial de sua demissão não passou nem perto do fato se sua recusa à expatriação, ocorrida no final do ano anterior.

Mas pobres dos homens que acreditam terem as mulheres perdido sua intuição e capacidade de enxergar nas entrelinhas e nos indizíveis das situações, só porque ganharam espaço corporativo e competências, antes exclusividade masculina.

Não!

Mulheres que ainda não se perderam de si mesmas e de sua essência não cometem tolice dessa grandeza.

Ciça, Constantine e Dani escolheram permanecer no comando de suas vidas e carreiras.

 *Conto publicado com autorização do autor e da editora. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n° 9.610, de 19/02/1998. Sua reprodução não poderá ser feita sem autorização prévia e por escrito da editora, quaisquer que sejam os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Sobre o Autor

José Renato Siqueira Jr. é consultor de outplacement e carreiras da DBM do Brasil desde 2001. Por dezoito anos atuou como executivo e consultor de RH e qualidade em empresas líderes, dentre elas a Rhodia. É palestrante e professor convidado em diversos cursos de especialização e MBAs (FIA-USP, FGV-SP, IBMEC, UNESP – São José dos Campos, Mackenzie e Faculdades Oswaldo Cruz) e autor dos livros: “Em pleno vôo” – poesias (2007) e “Conduzindo a própria carreira” pela Editora Campus Elsevier (2009), do qual faz parte o conto acima apresentado.

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